IGREJA PAROQUIAL DE SÃO MARTINHO DE SINTRA
Em 1147 Lisboa foi reconquistada com a ajuda de cruzados, provavelmente os cruzados eram francos (referidos na Cronica Gothorum e crónicas de outros cruzados, Oliveira, José Augusto, O Cerco de Lisboa em 1147). Sintra poderá ter sido habitada por francos, que terão atribuído à respectiva paróquia uma invocação com a qual se identificavam, ou seja, São Martinho. A igreja de São Martinho guarda três imagens do santo, duas esculturas do século XVIII e uma tábua quinhentista.
Resta apenas, da primitiva, a estrutura gótica da capela-mor, visível do exterior, incluindo a lápide trecentista de Margarida Fernandes e três tábuas de pintura portuguesa de meados do século XVI - "S. Martinho e o pobre", "S. Pedro" e "St.º António" - atribuídos ao Mestre de S. Quintino".
No século XVIII, temos notícia da construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Desamparados, com vista a ministrar serviço religioso aos presos da Cadeia, por isso encostada à parede leste da Igreja e virada para o estabelecimento prisional, acoplada, portanto, à Matriz e edificada a partir de 1755, depois do terramoto.
Do seu acervo, destacam-se três excelentes pinturas quinhentistas alusivas à vida de São Martinho de Dume, que decoram as paredes da nave, as quais, decerto, integrariam o primitivo retábulo-mor de meados do séc. XVI.
A Matriz preserva ainda uma boa coleção de imaginária setecentista, de pratas e de paramentos, para além dos belos vestígios estruturais trecentistas (panos cegos da ábside contrafortada, lápide gótica de Margarida Fernandes (1334) e inúmeras siglas de canteiro).
Arquitetura religiosa, pombalina. Igreja paroquial de planta longitudinal, provida de galilé vazada por arcos plenos e ábside de topo facetado. Nave única coberta com abóbada de berço e paredes totalmente pintadas com marmoreados polícromos. Altares laterais de talha dourada e pintada e retábulo da capela-mor com nichos a ladear camarim com trono.
Fachada principal de 3 panos divididos por pilastras, o central rematado em frontão interrompido e sobre o qual se eleva o corpo da torre sineira. Na cabeceira vestígios da caixa murária e contrafortes da construção gótica.
A inscrição funerária de Margarida Fernandes, apresenta restos de linhas auxiliares.
Planta longitudinal, composta pela justaposição de 3 corpos: 2 retangulares correspondentes à galilé e nave, e ábside de topo poligonal; sobre a galilé uma torre sineira quadrangular.
INTERIOR: Nave única com paredes laterais pintadas com imitação de marmoreados em branco rosa e azul, lambim apainelado de madeira entalhada e alguns rodapés de azulejos azuis e brancos - aproveitamento de azulejos do século XVII e alguns de produção recente. Coro-alto com guarda de balaústres de madeira; Capela batismal, em semi-círculo e coberta com abóbada de concha, albergando pia batismal octogonal; na parede do mesmo lado púlpito com guarda voz encimado por janelas pintada em "trompe l'oeil" imitando as que lhe estão defronte; de cada lado 3 altares inscritos em arcos plenos, com retábulos de talha dourada e pintada; pavimento lajeado onde encontram tampas de sepultura epigrafadas e cobertura em abóbada de berço apoiada em cornija, com pintura apainelada e figurativa alusiva a São Martinho.
Precede a capela-mor arco triunfal flanqueado por pinturas dos Passos da Paixão de Cristo. Capela-mor com pinturas ornamentais marmoreadas nas paredes e na abóbada de canhão que a cobre; lateralmente silhar de azulejos monócromos e no topo retábulo em talha dourada e pintada com camarim e trono onde figura imagem de Cristo Crucificado, e rematado por frontão triangular interrompido por resplendor, ladeado por nichos com as representações de São Martinho e do Sagrado Coração de Jesus.
Capela Senhor dos Passos
É um pequeno espaço simples, mas elegante, um quase oratório palaciano ou de casa nobre, e, por isso, de acentuado intimismo. Todo ele é forrado a talha dourada e madeira pintada de bege, com treze áreas emolduradas certamente para a colocação de um programa iconográfico relacionado com a Paixão de Cristo.
Apenas uma, a central, principal e maior, foi preenchido com uma Última Ceia. Em termos de distribuição, a parede fronteira tem cinco e cada uma das laterais, quatro. A pintura de bege, imitando lioz, como vimos, cobre a superfície onde se colocariam as telas e os intervalos entre filetes dourados, sendo de crer que sob ela exista a pintura marmoreada original, ou pelo menos, que fosse essa a intenção original. Além da grade de madeira, que a separa da nave, a capela tem duas portas laterais, uma verdadeira e outra falsa, numa afirmação de valores estéticos clássicos de simetria.
Ao centro da parede de fundo vemos uma tela claramente setecentista com a Última Ceia, que deve ter sido ecolocada. No tecto temos uma pintura a fresco com quatro pelicanos, um maior e três pequenos, provável alusão à figura de Jesus. O pelicano é capaz de rasgar o ventre com o bico para alimentar as crias, morrendo pelos filhos, como Deus encarnado na pessoa de Jesus. Os pelicanos estão inscritos num óculo aberto para um céu azul em trompe l’óeil, envolvido por dois panejamentos simétricos, brancos, (a mortalha de Cristo e o Santo Sudário) dispostos em forma de grinalda, ao gosto da pintura pompeiana. A abertura do tecto em óculo, por artifício da pintura, é de tradição clássica, remotamente encadeada na já referida Camera Picta, de Andrea Mantegna, em Mântua, de apreciável sucesso em Portugal na segunda metade do século XVIII, durante o Rococó e o Neoclassicismo.
A capela conserva duas esculturas, uma do Senhor dos Passos, que sai na respectiva procissão, e um Senhor Morto. Ambas são imagens em tamanho natural, de produção quase serial, frequentíssima, pelo menos desde o século XVII, sendo quase todas repetidas, sobretudo as do Senhor dos Passos. De grande importância no mundo católico, assumiram, como é bem sabido, variadíssimas formas de culto.
Ao lado, o primeiro altar do lado do Evangelho contem um dos retábulos mais interessantes da Igreja, uma espécie de maquineta, mas que recorda a forma de retábulo dito transparente, embora não o seja (realmente, porque não existe qualquer abertura de luz natural por detrás dele).
Santo André
A imagem de Santo André, é também setecentista e um das melhores de todo o conjunto da igreja, tendo pertencido à Irmandade de Santo André e das Almas, diferindo somente do anterior devido às duas peanhas laterais, uma de cada lado, muito ao gosto rococó. Terá sido um retábulo executado para esta invocação, na medida em que na cartela se inscreve a cruz em aspa, símbolo do martírio do santo (também conhecida como Crux decussata, isto é, "cruz em forma de ”x”), que se julgava indigno de ser crucificado no mesmo tipo de cruz que havia sido usada para Cristo.
São Martinho
Na igreja de São Martinho verificamos que não é isso que acontece. Existem três imagens de São Martinho bem distintas entre si: uma pintura do século XVI, e duas esculturas, julgamos, do século XVIII, em que o santo aparece de forma bastante hierática. A que está no altar-mor, do lado do Evangelho, ou seja, do lado direito na perspectiva do retábulo, como convém ao orago, pela dimensão perfeita para o nicho, terá sido encomendada para esse local. Já a que se guarda actualmente no Museu de Arte Sacra, de porte maior, é mais rica e terá sido executada com fins processionais.
Esta imagem, talvez processional, pode relacionar-se em termos de fabrico com as de Santo André e de Nossa Senhora da Conceição. Estas duas peças parecem saídas da mesma oficina, e revelam uma expressão dolorosa caracteristicamente barroca, única no acervo da igreja. Sem essa expressão de dor, imagem de São Martinho a que chamo processional, tem em comum os traços fisionómicos, a base, e o acabamento da policromia, relacionando-se em termos oficinais com essas duas. Contudo, a expressão serena, clássica, inexpressiva até, aproximam-na do gosto da imagem do retábulo-mor.
Em Portugal a representação mais frequente é a equestre, no momento em que o santo partilha a capa com um mendigo, que seria Jesus. Esta representação ficou conhecida em França por Charitée ou Charité de saint Martin, o que não deixa de ser interessante na medida em que, além de símbolo (simboliza o santo representado), se reveste de um carácter alegórico, ou seja, através da literatura personifica um valor, neste caso a “caridade”, a capa a ser cortada (atributo) para cobrir o mendigo (Jesus Cristo).
O São Martinho-bispo tem necessariamente de ser representado com os atributos de um bispo, “emigrando” do interior para o exterior, através da túnica, da camisa, da dalmática e da casula. A túnica e a camisa por estarem sob a dalmática, frequentemente ficam ocultas, e dificilmente se estabelece uma evolução formal da indumentária. Pelo contrário, a dalmática e a casula são bem visíveis. A dalmática é geralmente usada por qualquer eclesiástico, mas a casula – cujo uso foi fixado no IV Concílio de Toledo em 633 –, pode ainda ter uma capa a cobri-la, que em forma e uso particular, pode ser um pluvial, capa magna ou capa de asperges (não são exclusivas dos bispos), que é uma espécie de casula usada pelo sacerdote no momento da aspersão da água benta. A capa é, pois, um elemento, por vezes, saliente nas representações de São Martinho, devido, sobretudo, ao acto caridoso da partilha. Esta peça sendo mais evidente, está sujeita a uma evolução formal, que inclusivamente pode contribuir para situar cronologicamente a representação. Por conseguinte, entre os séculos X e XIII, obedeciam a um desenho cónico, nos fins do século XV, por uma questão de conforto generalizam-se as casulas em forma de guitarra, e no período barroco sofrem um aditamento, acrescentando-se as mangas. Também o material foi sendo diferente. Da sobriedade inicial, passaram a ser muito decoradas a partir do românico, nomeadamente no século XI, usando-se essencialmente a seda, um tecido muito raro e valioso que, geralmente na Europa, era de importação, havendo casos excepcionais de produção, como em Múrcia. No século XVI, entretanto, desenvolve-se a técnica do brocado e do verdugo que passou a ser aplicado na decoração das casulas.
Os outros atributos que identificam os bispos são o báculo e a mitra. O báculo é, na sua essência, um bastão de apoio usado por bispos, abades, abadessas e papas10, cujo remate consiste num símbolo. Esse símbolo pode ser uma cruz ou um enrolamento (a crossa), que remete para o cajado dos pastores. Se forma uma cruz, será simples, já que as cruzes que têm um segundo travessão mais curto e são exclusivas de arcebispos e patriarcas, e as que têm mais dois travessões sucessivamente mais curtos, são pontifícais11. Por outro lado, as mitras (que têm origem na infula, uma forma romana de cobrir a cabeça), consistem em gorros formados por duas peças, uma anterior, e outra posterior, e os fanhões, (as duas fitas que caem sobre as costas), que rematam superiormente em ponta, e que são usadas só por bispos durante as cerimónias. O gesto é o comum entre as representações de santos-bispos, ou seja, o da bênção, mas também a outras dignidades eclesiásticas que tenham sido canonizadas, como os sacerdotes. O gesto de abençoar, uma forma de imposição pelas mãos com origens no judaísmo, é explicado por Barbara Pasquinelli13 como forma de significado de protecção divina a alguém ou a qualquer coisa. Atribui esse gesto como comum à “mão de Deus”, a Cristo, aos eclesiásticos (bispos, para o caso de São Martinho), a Isaac benzendo Jacob, e a santos protectores (nos quais também se inclui São Martinho). A fonte gestual, prototípica, refere-a ser o gesto da adlocutio ou allocutio romano, que se traduz o latim por alocução, fala, discurso, palavras de consolação, exortação. A mesma autora considera-o um dos mais importantes da liturgia cristã, tendo por modelo a dextera Domini – a mão de Deus, como origem do significado simbólico no cristianismo.
Neste particular, podemos ainda distinguir o gesto de bênção latina do gesto grego. O primeiro efectua-se com o polegar, indicador e maior estendidos ao alto, e os outros dobrados para o interior. No caso grego, indicador, maior e mínimo apontados ao alto, polegar e anular dobrados e a tocarem-se nas extremidades. Neste caso é possível reconhecer no gesto, as letras “IC” e “XC”, que designam abreviadamente e de forma arcaica o nome de Jesus Cristo em grego. Estes gestos substituíram, no século III, a bênção por imposição das mãos, e num importante manuscrito jurídico alemão do século XIV, surge já como o gesto de juramento comum. A origem, remota, destas posições de dedos provém do orator romano e aparece como a gesticulação recomendada nos textos antigos sobre retórica. A partir do seu uso na arte medieval, pode simplesmente indicar que alguém está prestes a falar, ou que já o está a fazer.
Martinho tinha entre quinze e dezoito anos, pertencia ao exército romano, ia a passar à porta de Amiães, era Inverno rigoroso, partilhou a capa com um mendigo, cortando-a com a espada. Não se refere se ia a cavalo ou se estava trajado como soldado. No entanto, as imagens que se generalizaram foram a representação equestre e, particularmente durante a Idade Média, não trajado de militar, já que no universo de casos encontrados para o período barroco Martinho enverga indumentária de soldado.
Eugène Droulers no seu Dictionnaire des Attributs, Allégories, emblèmes et symboles, refere sobre o “cavalo”, que está relacionado com a vitória da autoridade, da actividade, da obediência, do entusiasmo pelo trabalho; na Antiguidade era associado por exemplo a Pégaso, o cavalo alado sobre o qual Belerofonte combateu e matou a Quimera. Cavalo que estava, também, relacionado com o emblema dos poetas, que tem como referente Hipocrenes, além de ser, por outro lado, atributo de Santo Ambrósio, Santo Elói, São Jorge, Santiago Maior, São Marcos, São Martinho e São Victor. O cavalo é um animal belicoso associado a Marte, deus da guerra, não que ataque por génio, mas porque serviu o homem na sua história belicosa. É aqui que se pode estabelecer o que nos disse Tiago Voragine sobre a origem etimológica do próprio nome “Martinho”, martem tenens, como sendo “aquele que domina Marte”.
Nas representações de São Martinho, os cavalos estão geralmente representados de branco e cinzento claro. Diz-nos Michel Pastoureau, no seu Dicionário das Cores do Nosso Tempo, que em linguagem hípica o cavalo de “corpo cor de cinza” e monocromático é um cavalo “rato”18, mas que estas designações se apoiam-se em “impressões e classificações subjectivas, e mais reveladoras da paleta do pintor ou do poeta que da do físico”19. No entanto, afirma que “este vocabulário tem, contudo, razão de ser e, na maioria dos casos, o aparente esoterismo vai a par com uma elevada e necessária tecnacidade”20. Resta-nos apenas conhecer o que nos diz Pastoureau sobre o branco e o cinzento. Sobre o branco considera que é cor da pureza, da castidade, da virgindade e da inocência, quando associada a questões litúrgicas e de simbologia cristã, e que é cor do divino, quando vinculado a entidades divinas como os anjos, a eternidade ou o Paraíso 21 O cavalo branco pode associar São Martinho à ideia de conquista – missão de Cristo –, por relação com o cavaleiro branco referido no Apocalipse. Pastoureau também refere outros significados do branco, em nada relacionados com a religião e a cristandade. Sobre o cinzento não dá qualquer significado simbólico, destacando antes o facto de possibilitar aos fotógrafos as variações tonais, embora na verdade o cinzento seja na maior parte das vezes a variação tonal do branco, que assim e assume, por exemplo, como cinzento prata. O cavalo, que podia ser também castanho
ou preto, não o é provavelmente porque o castanho, segundo Pastoureau, não tem nenhum significado23. Relativamente ao preto, – sem o ligar a qualquer animal – o mesmo autor menciona apenas dois sentidos quando aplicados à cristandade: a cor da morte, que é a do Inferno e das trevas, do luto, dos rituais funerários e da infelicidade; é cor da austeridade, da renúncia, da religião, quando unida aos trajos eclesiásticos, à humildade, à modéstia, à temperança, à fé, à beatice, ao puritanismo e à austeridade protestante24.
O significado da capa está relacionado com o de abrigo25 e, de certa forma, é o que São Martinho acaba por dar ao pobre que recebe parte da sua capa: um abrigo num Inverno rigoroso. Em termos de cor, a capa nas representações equestres de São Martinho é geralmente fiel à cor vermelha. Tal como o branco do cavalo, é o único elemento cuja cor é dominante nas diversas representações e, embora os estudos de cor se devam fazer para casos muito particulares e específicos, é interessante saber o que nos diz o mesmo Michel Pastoureau, sem dúvida um dos maiores especialistas mundiais sobre os significados cromáticos, acerca do encarnado. No seu Dicionário das Cores do Nosso Tempo26, afirma que o vermelho assume particular relevância em numerosas culturas, o que acaba, muitas vezes, por ser um pleonasmo, pois em diversas línguas a palavra “vermelho” significa simultaneamente “cor”, “colorido”, “bonito” ou “rico”. Em termos antropológicos, o vermelho está em quase todas as civilizações associado ao sangue e ao fogo, tendo acepções positivas e negativas. No caso específico da cultura cristã, Pastoreau recorda que o sangue tomado positivamente é o que dá vida, purifica e santifica, e relaciona-se com o vermelho do sangue que Cristo derramou na cruz para salvar os homens. É sinal de força, energia e redenção. Tomado negativamente, é símbolo de impureza, violência e pecado, ligando-se a todos os tabus sobre o sangue herdados da Bíblia, sendo o vermelho da carne impura, dos crimes sangrentos da cólera e da revolta do homem. Embora como se viu, se pode complexificar o significado do vermelho, ele é na sua essência, uma cor associada a Marte, deus da guerra, pelo que se torna óbvio São Martinho, como militar, apresentar uma capa vermelha.